Atualmente, a Justiça é relativamente humanizada na maior parte do mundo. Antes da Idade Contemporânea, os presos eram trancafiados em lugares extremamente insalubres, eram torturados e executados de maneiras cruéis. Como essa realidade punitiva bárbara que existira em toda a História da Humanidade passou a ser colocada em xeque e a desaparecer em vários países? Para encontrarmos a reposta, lemos a consagrada obra Vigiar e Punir do famoso filósofo francês Michel Foucault.
Vários saberes presentes hoje, como a psiquiatria com seus laudos psiquiátricos e a antropologia criminal, existem com o intuito de diagnosticar e trabalhar o subjetivo do indivíduo delituoso. São saberes científicos que, de acordo com Michel Foucault, servem para “dar aos mecanismos da punição legal um poder não mais simplesmente sobre as infrações, mas sobre os indivíduos” (FOUCAULT, 1987). Graças a esses mecanismos, os juízes passaram a julgar a alma dos criminosos.
Quando o juiz determinou a pena desse preso representado no quadro acima, não o fez para ressocializar o criminoso nem mudar seu temperamento e muito menos fazer com que o réu se arrependesse do seu delito. Seu objetivo era punir o ato criminoso em si. A personalidade e o arrependimento do criminoso não eram objeto do sistema judicial. A própria intenção do delito era ignorada. O juiz desse caso e seus colegas faziam somente três coisas: elucidar o ato, determinar sua autoria e aplicar a pena prevista na lei.
Foucault é famoso por sua obra sobre a História da loucura. Nesse texto que estamos apresentando de outro livro, esse tema é destaque e durante tal abordagem, Foucault revela esse processo de humanização da Justiça. Citando o caso francês, o autor afirma que até o início do século XIX loucura e crime eram excludentes na legislação: se o autor se um delito fosse considerado louco, ele não somente não era punido, mas o próprio ato deixaria de ser crime. Ocorria uma “improcedência judicial”, extinguindo o processo.
Porém, nesse período uma interpretação heterodoxa sobre o tema passou a aparecer na jurisprudência mesmo com a reprovação inicial do tribunal superior por meio de decretos. Juízes passaram a considerar que uma mesma pessoa podia ser louca e culpada. Ao invés da loucura e da culpabilidade serem excludentes como previa o código e o Supremo Tribunal de Justiça, nas suas sentenças, esses magistrados heterodoxos colocavam que elas eram apenas inversamente proporcionais.
A dosimetria das penas não eram somente determinadas pelo ato praticado e pela culpa do indivíduo, passando a terem em conta o quanto o indivíduo era enquadrado dentro da normalidade mental pelo juiz. As sentenças judiciais passaram a classificar o indivíduo de acordo com o seu suposto grau de loucura e a estabelecer penas de acordo com suas possibilidades de evolução do quadro mental. Em 1832, a legislação francesa passou a estabelecer como norma essa jurisprudência (decisão judicial). Graças a isso, pessoas consideradas loucas passaram a ser aprisionadas.
A nova gama de condenados considerados loucos fez com que surgissem até mesmo manicômios especializados em abrigar e tratar esses novos criminosos, como podemos ver nessa foto de um manicômio judicial no Brasil:
Esses novos manicômios passam a existir unicamente para tratar presos classificados pelo conhecimento médico como loucos.
Surge com isso no sistema legal a figura de profissionais responsáveis por ajudar o juiz na sua sentença e auxiliar o louco no seu tratamento, como, por exemplo, peritos psiquiátricos, psicólogos e educadores. Esses profissionais assumem as vezes de juízes anexos, que, mesmo não dando a palavra final, possuem o poder de controlar a pena do prisioneiro considerado louco, permitindo ou não que ele, por exemplo, consiga uma progressão na pena para o regime semiaberto ou que tenha a possibilidade de um dia conseguir a liberdade. Esses saberes deixaram de serem apenas mecanismos de diagnóstico da situação do preso, eles passaram a ser mecanismos de tratamento e condicionamento do indivíduo e de poder.
A inserção desses elementos e tratamentos extrajurídicos no sistema legal de acordo com Foucault foi feito para que eles atuassem exatamente como elementos extrajurídicos para que o processo legal deixasse de ser apenas uma punição legal como outrora e que o juiz deixasse de ter como função apenas punir. A justiça criminal contemporânea se justifica pelos elementos não-jurídicos que ela passa a conter, pelos saberes não-jurídicos que incorpora e que objetivam a recuperação do preso. Graças a isso, a Justiça humanizou-se.
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